Tumbes

Tumbes

Tínhamos acabado de chegar a Tumbes, cidade peruana perto da fronteira do Peru com o Equador. Já passavam das nove horas da noite e não teríamos mais tempo de ir a Trujillo, como era o plano original do Michael. Ainda assim, por cinco soles, pegamos um mototáxi da empresa de ônibus CIFA, que nos trouxera do Equador, até uma rua no centro da cidade, onde havia vários outros terminais de ônibus, para, quem sabe, ainda tentar partir imediatamente para Trujillo.

Em Tumbes, não há uma rodoviária que centralize o trabalho de diversas empresas de transporte urbano, mas apenas garagens específicas das várias companhias de ônibus que operam na região. Desse modo, o mototaxista nos levou a uma rua onde havia umas três garagens de empresas que cobriam as cidades do sul, para que pudéssemos pesquisar e comprar as passagens para Trujillo. Confirmamos em umas duas que, realmente, não havia mais horários para Trujillo naquele momento, mas somente para o dia seguinte. O motorista, então, insistiu em nos encaminhar a um hotel acessível que conhecia; Michael desconfiou do jeito entusiasmado demais dele e, como já estava muito escuro, preferimos não continuar no mototáxi por quebradas, provavelmente, desconhecidas e desertas. Para Michael, talvez ele nem tivesse um hotel em mente, mas quiçá um sinistro plano de nos assaltar, em alguma erma esquina. Para mim, sua excitação exagerada na recomendação de um hotel deveria ser só uma comissãozinha por baixo do pano, afinal, ele estava em um mototáxi numerado e aguardando por clientes dentro de uma empresa. Enfim, mesmo sem estar insegura nesse sentido, ficamos por ali mesmo e nos hospedamos em um hotel na mesma rua, o Spondylus, cuja diária em quarto duplo com banheiro era de 60 soles (Spondylus Hospedaje. Avenida Tacna, 327 Tumbes/ (072) 521-384/ www.hotelspondylus.com/ spondylus@live.com).

No dia seguinte, 2 de agosto, fizemos check-out pela manhã e deixamos nossas mochilas na recepção do hotel. Na Avenida Tacna, entramos novamente na empresa de ônibus El Dorado, nossa preferência para a compra, pois os ônibus eram mais ajeitados e os motoristas pareciam mais confiáveis. A fila estava grande e, infelizmente, as passagens de Trujillo para a noite já tinham se esgotado; compramos os bilhetes, então, para as 20h30min do mesmo dia, na vizinha companhia El Sol. O valor de cada passagem foi de 30 soles. Como as viagens para Trujillo, em qualquer empresa, só começam durante a noite, tivemos que nos contentar com uma empresa menor, a El Sol, cujos ônibus eram bem piores. Seria isso ou passar mais um dia inteiro em Tumbes, o que estava fora de cogitação. Para viajar durante aquele mesmo dia, chegamos até a considerar a rota alternativa Tumbes – Piura – Trujillo, mas, além de mais caro, passaríamos a tarde inteira viajando e chegaríamos ao destino durante o início da madrugada, ainda tendo que gastar uma diária de algum hotel para dormir o restante das horas até a manhã; ou seja, não compensava nem por tempo, nem por dinheiro. Dessa forma, o melhor que tínhamos a fazer era mesmo passar o dia fazendo turismo involuntário na pequena cidade de Tumbes, viajar durante a noite e chegar pela manhã a Trujillo.

A garagem da companhia El Sol refletia sua frota, imunda e caindo aos pedaços. Era só um balcãozinho de madeira, colado a um canto da parede suja; nada de computadores, guichês ou qualquer sistema organizacional. Esperamos o igualmente sujo e engordurado atendente da empresa morosamente preencher, à mão, todos os formulários dos passageiros da fila e partimos para explorar a cidade pouco depois do meio-dia. Para Tumbes, eu tenho somente um adjetivo: brega.

Historicamente, Tumbes foi um ponto estratégico na campanha inca de expansão de seu império. Na cidade, Túpak Yupanqui (ou Yupanki), e posteriormente seu filho Huayna Cápac, reunia as suas tropas a caminho do Equador e foi dali que eles partiram para a conquista da tribo cañari, em Ingapirca. No porto de Tumbes, o conquistador espanhol Francisco Pizarro aportou em busca de ouro e também utilizou a região como partida para suas expedições militares nas áreas onde hoje se encontram o Peru e o Equador. Em tempos coloniais, Tumbes foi apenas lugar de descanso e reabastecimento dos soldados de Pizarro; depois da independência do Peru, entretanto, a cidade ganhou mais importância, como ponto de resistência na guerra territorial contra o vizinho Equador.

Atualmente, com pouco mais de 100 mil habitantes, Tumbes reflete o passado bélico e a influencia espanhola em esculturas de gosto muito duvidoso, espalhadas pelas suas praças. A cidade é essencialmente… Brega. Na avenida do hotel, há canteiros interessantes e lindíssimas árvores de flores vermelhas; tudo, porém, é um pouco empobrecido por estranhos painéis de mosaicos e pinturas esquisitas que retratam a invasão dos espanhóis.

árvores bonitas...

árvores bonitas…

 

mas os monumentos...

mas os monumentos…

Em seguida, o malecón que margeia o rio segue o mesmo princípio estético discutível, exibindo azulejos alaranjados, cobertura de lona e vitrais coloridos. Nada combina com nada e a impressão que se tem é que cada parte foi construída separadamente e juntada sem nenhum critério; não há continuidade ou coerência entre os itens construtivos para se formar um todo esteticamente agradável.

malecón

malecón

Na praça central, onde está a Catedral, a breguice continua na edificação de uma desastrosa espécie de concha acústica adornada com a enorme cabeça de um índio que guarda paisagens naturais, onças, plantas e a figura de um espanhol a cavalo lutando contra um indígena, tudo cuidadosamente esculpido com milhões de pastilhas de cerâmica e vidro. Na verdade, há que se dar o mérito ao trabalho, mas o conjunto da obra é, infelizmente, horrível! Todas as cores do arco-íris contornam a tal da concha, deixando-a ainda mais confusa. Na mesma praça, o coloridíssimo prédio da prefeitura acompanha o mesmo padrão vulgar do entorno. Salvam-se as belas árvores bem podadas e, talvez, a catedral. Sinceramente, meu senso estético, influenciado pelo restante da cidade, não sabe dizer se a catedral é bonita ou não; tendo a dizer que não…

centro de Tumbes

centro de Tumbes

 

eu heim!

eu heim!

 

detalhes...

detalhes…

 

prefeitura de Tumbes

prefeitura de Tumbes

 

Catedral de Tumbes

Catedral de Tumbes

Na área, há restaurantes baratos, agências bancárias, caixas eletrônicos e muitas lojas. Almoçamos, Michael tirou dinheiro em um caixa e continuamos nosso passeio, rumo à terrível escultura El Beso, na qual um homem e uma mulher abraçados celebram o amor com um beijo. As ruas da cidade são simples e as construções banais. Com exceção de uma ou outra fachada mal conservada dos tempos coloniais, nada se aproveita. Algumas agências de viagens oferecem passeios aos famosos manguezais da região, mas nós queríamos mesmo era fugir dali. Em dado momento, um morador locar nos sugeriu que não andássemos por ruas desertas e tomássemos cuidado com alguns mototaxistas, cuja estratégia criminosa era passar correndo e arrancar bolsas de turistas distraídos.

Alcançamos a escultura, próxima ao rio, só mesmo para confirmar sua feiura e retornamos ao hotel.

El Beso

El Beso

Na marquise da prefeitura, testemunhamos algo, no mínimo, inusitado: vários moradores sentam-se com mesinhas e máquinas de escrever, oferecendo seus serviços de datilografia, para cartas e documentos.

Tumbes

Tumbes

Mais adiante, em uma praça, encontramos outra enorme estátua, agora de Jesus Cristo, provando que a força do indígena, em última instância, teve que ceder à religião espanhola. O Jesus super cafona tem detalhes em vitral, como os do malecón; pastilhas de vidro, como a concha acústica da praça principal, e um desconfortável senso de proporção, como qualquer outra escultura da cidade.

outra beldade...

outra beldade…

 

mototáxi em Tumbes

mototáxi em Tumbes

Eu devo dizer, na verdade, que Tumbes é sim coerente. Quando eu afirmei que nada combina com nada, me refiro às obras individualmente, mas o conjunto de todos os trabalhos se ajusta entre si, ou seja, todos eles são igualmente bregas. A sensação é de que o mesmo artista pensou em todas as estátuas, esculturas e pinturas de modo que elas produzissem, de fato, um conjunto coerente ao longo da cidade; por isso, elas utilizam os mesmos materiais e parecem ter saído da mesma mente de mau gosto. Francamente, eu não quis pesquisar mais para saber quando exatamente as obras foram concedidas à cidade de Tumbes e qual foi o designer ou comissão responsável por elas. Quem quiser, sinta-se à vontade.

Nós voltamos ao hotel e esperamos pelo início da nossa viagem a Trujillo. O busão da El Sol não negava a fama ruim, a TV não funcionava, o banheiro era imundo e tudo fedia a xixi. Algumas horas depois do começo da jornada, paramos em um posto policial para inspeção das bagagens. Ficamos lá durante duas longas horas até que tudo fosse revistado. É comum a polícia parar os ônibus intermunicipais, mas geralmente a interrupção é rápida, só checagem de identidades, de passageiros aleatórios. De nós, os passaportes eram sempre pedidos e, assim, já tínhamos nos acostumado a viajar com os documentos bem à mão. Logo que paramos na polícia, havia uma fila de ônibus para a fiscalização. Tudo estava muito escuro e um pesado silêncio abatia os passageiros, com exceção de uma doida varrida. Naquele breu calado, uma louca, de repente, disparou a gritar ao telefone celular. Sem exageros, aquilo não era um simples caso de falta de educação, era loucura! Tudo escuro e aquela única mulher berrando, para que a outra pessoa ligasse de volta, pois a bateria do celular estaria no fim. A dita cuja gritava e parecia chorar ao mesmo tempo, já que não tinha o retorno esperado do pobre coitado do outro lado da linha. Alguns outros passageiros até interviram e pediram que ela se calasse e, finalmente, já era nossa vez de fazer a revista na polícia.

Apesar das condições não serem as melhores, com a louca ao telefone e a parada policial para checagem, consegui dormir no restante da viagem de 14 horas, no total. Em 3 de agosto, acordei com a luz do sol na janela do ônibus e ainda pude ver um pouco do caminho até Trujillo, que não era nada bonito. Montanhas de terra nuas e areentas abrigam cidadezinhas empoeiradas na beira da estrada e uma delas, em particular, foi provavelmente o lugar mais feio que eu vira na minha vida, até então. A pequena Pacasmayo é mais horrível do que bater na própria mãe. Casebres sem reboco parecem carregar um pó milenar que não tem solução, já que a região é árida e desértica.

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