Trujillo

Trujillo

Chegamos à rodoviária da El Sol em Trujillo e foi outro estresse para pegar um táxi e ir à casa do Omar, outro membro do Couchsurfing. Animado pela minha boa experiência em Cuenca, no Equador, Michael decidira dar novamente crédito à comunidade e me acompanhou na nova tentativa de “surfar” num sofá de Trujillo. Entretanto, para evitar situações como as da Venezuela, na qual paralisamos diante da amabilidade do anfitrião e acabamos aceitando dormir no chão da casa mais imunda que eu já tinha entrado, nós combinamos um código de fuga delicada, caso as condições não agradassem; assim, nós não teríamos que nos submeter a algo indesejado, mas não feriríamos os sentimentos da pessoa que estava tão gentilmente cedendo sua morada a viajantes. Já do táxi, tive a impressão de que o nosso ensaio com a desculpa se mostraria bastante providencial; o bairro era bem feio e parecia inseguro. Encontramos a rua e o número indicado era um bar de esquina. Estava fechado, pelo horário do dia, mas logo Omar nos recebeu à porta. Simpático, nos encaminhou ao interior do prédio, onde um casal de franceses usava o computador. Eles também estavam ali pelo Couchsurfing e, como nós, tinham acabado de chegar. Achei estranho, mas imaginei que o anfitrião tivesse, então, condições de receber quatro pessoas. Ficamos na sala do bar por alguns instantes, entre conversas introdutórias e comentários gerais. O ambiente era estranhamente decorado com objetos místicos. O balcão estava de um lado da sala, com cadeiras e pufes e uma mesa de sinuca ocupava o outro lado, ao fundo. A limpeza passava longe dali e pedi para usar o banheiro a fim de investigar um pouco mais. Como previa, o cubículo ao lado do balcão de bebidas fedia mais que galinheiro e não tinha papel higiênico.

Michael não tinha tomado café da manhã e, assim, pedimos orientações a algum mercadinho para talvez verificar se a vizinhança poderia compensar a estada no bar do Omar. De fato, o bairro era mesmo bem sinistro, como já tínhamos reparado, e a cerca de um quarteirão da casa, entramos em um tipo de galeria, com várias lojinhas vendendo carne, frutas e comida em geral. Moscas se refestelavam sobre os pedaços de carne pendurados sem absolutamente nenhum critério de higiene e enormes cães babavam livremente sobre as mercadorias. Michael comprou umas bolachas industrializadas e deu-se por satisfeito. De volta à casa e decepcionados com a nojeira do lugar, pedi para deixar as mochilas no quarto; tudo bem, a casa era imunda, deveríamos tomar cuidado para não voltar à noite de passeios, pois o bairro era meio estranho, mas o anfitrião era solícito e gente boa; quem sabe se o quarto fosse decente… Enfim, minutos depois, dei um sinal de cabeça para o Michael, seria a hora de usarmos nossa mentirinha branca. Segundo informações do próprio dono da casa, o quarto era um antigo depósito que ele e a mãe transformaram em um ambiente para recepcionar hóspedes. Honestamente, tive ímpetos de comentar que a “transformação” ainda não fora completa. Uma cela nos piores anos do Carandiru era melhor do que aquele pardieiro. Nele, as paredes que um dia haviam sido azuis, estavam totalmente encardidas e imundas por anos de negligência; uma cama de solteiro com um finíssimo e vergado colchão de molas estendia-se encostada à parede e uma colcha asquerosa deitava-se sobre ela; eu não tive coragem nem de me sentar na cama. Não havia janelas no quarto, o que o deixava mais taciturno e nauseabundo. Ao lado da cama, restos do velho “depósito” ainda se amontoavam, evidenciando a função antiga do aposento; eram cadeiras de praia quebradas, cabides retorcidos, colchonetes furados, caixas, encostos de cadeiras, tudo podre e pedindo por uma caçamba de lixo. Uma cômoda empoeirada que parecia ter sido pega de um poste de enchente também ocupava um lado do quarto e um repugnante tapete de sisal cobria o piso sujo de cimento. Do lado de fora, uma mesa de bilhar profissional servia de apoio a dezenas de latas de tinta vazias e mais uma série de cacarecos deixavam a sala digna de um reality show sobre acumuladores. Pois é, escolhemos o perfil do Couchsurfing porque ele morava com a mãe e, nesse caso, a jovem senhora não ajudava em nada a manter a casa em ordem. Dessa forma, nós daríamos uma desculpa e iríamos embora.

Não se tratava de frescura, de modo algum. Se Michael e eu fôssemos frescos, não teríamos partido para essa viagem, com o nosso orçamento, em primeiro lugar. Nós já tínhamos ficado em albergues simples, em quartos sujos, em barracas úmidas e até dormido no meio da sala de um apartamento em Quito. Nós também sempre escolhíamos os restaurantes mais baratos, os transportes menos chiques e nada abatia nosso humor; mas tudo tem limites. Ficar na terrivelmente nojenta casa do Ricardo, na Venezuela, já tinha ultrapassado nossa cota de tolerância à porquice. Não precisávamos disso de novo, francamente. Um albergue simplesinho com 14 camas num quarto era bem menos repelente do que aquele aposento ignóbil de Trujillo. Há “sujeiras e sujeiras” e aquela excedia qualquer nível aceitável.

Confidenciamos discretamente aos franceses que queríamos ir embora, pois não íamos aguentar tanta imundície. Eles olharam um para o outro, riram e decidiram ir junto. Como “viajantes profissionais”, atravessando o mundo há anos, os europeus tinham de tudo para minimizar os problemas de uma viagem de baixo orçamento, desde panelas e utensílios de cozinha até um chuveiro portátil. Segundo eles, fomos nós que os animamos a sair do cafofo do Omar, pois eles já estavam tão acostumados a esse tipo de situação, que nem se importavam mais; para poder dormir no quarto, eles montariam a barraca e deitariam sobre os seus sacos de dormir, protegendo, assim, seus corpos da porcariada em redor. Como Michael e eu não tínhamos barracas, nem roupas de cama e Michael ainda perdera o saco de dormir num ônibus, teríamos que nos apinhar na cama de solteiro suja do quartinho e ficar a mercê de roedores ou pior, baratas! De jeito nenhum! Então, fomos todos dar a mesma desculpa que nós dois já havíamos ensaiado: tínhamos ido lá somente para conhecê-lo, já que ele fora tão gentil, mas decidíramos ficar na praia. Para não deixá-lo tão triste, ainda almoçamos no restaurante da mãe, anexo ao bar. Comidinha ruim, mas que matou a fome.

Dividindo a corrida de 14 soles de um táxi em quatro, partimos em seguida para Huanchaco, famoso balneário a poucos quilômetros do centro de Trujillo. Lá, o motorista foi generoso o suficiente para peregrinar conosco por alguns hotéis. Depois da pesquisa, escolhemos um cujo quarto era para quatro pessoas. Tinha WIFI, cozinha, e o preço estava bom, 12,50 soles por cabeça. Descansamos e caminhamos um pouco pela praia, no final do dia. Sabrina e Alex, o casal de franceses, era muito legal e boa companhia para papos profundos e superficiais.

Huanchaco é uma praia badaladinha e popular destino das férias peruanas. Cultuada pelo surf, devido às suas ondas de classe mundial, e famosa por ter sido supostamente o lugar de nascimento do “cheviche”, prato típico feito com peixe cru, cebola e muito vinagre, Huanchaco vive cheia, mesmo na baixa temporada. A praia em si é bem comum, mas a orla é lotada de restaurantes, hotéis e bares bonitinhos. Sobre a areia, há sempre comerciantes alugando os Caballitos de Totora, uma espécie de canoa de pesca feita da fibra de uma planta chamada totora, parecida com o junco. Bastante tradicionais e originários de Huanchaco, os caballitos também são reconhecidos como umas das primeiras pranchas de surf já feitas na humanidade e hoje, ainda é possível vê-los em ação, nas ondas consistentes da praia peruana. Para surfar com os caballitos, há que se usar um tipo de remo e surfistas do mundo inteiro se encontram ali para viver essa experiência.

séculos de surfe

séculos de surfe

caballitos de totora

caballitos de totora

O íntimo relacionamento da região com o surf tem três mil anos de história, idade de registros sobre o esporte encontrados em sítios arqueológicos de Huanchaco. Hoje, o antigo casamento continua, já que, além de sediar diversos campeonatos de surf, Huanchaco foi aprovada como Reserva Mundial de Surf, pela organização Save the Waves Coalition, em 2012. Mesmo os não profissionais também podem aproveitar as ondas de Huanchaco; nos hotéis, é sempre possível alugar roupas e equipamento para o esporte, assim como tomar aulas de surf com professores experientes.

Huanchaco

Huanchaco

ondas consistentes

ondas consistentes

Huanchaco

Huanchaco

A região de Huanchaco é habitada há séculos, tendo servido como porto para as culturas Chimú e, posteriormente, Inca. Em 1535, a cidade de Trujillo foi fundada e a região de Huanchaco continuou como porto principal, nos tempos da colônia espanhola. Hoje, vários vestígios das antigas civilizações também atraem turistas que, como nós, não estão em Huanchaco pelo surf, mas por essas diversas atrações arqueológicas presentes na região. No dia seguinte, por exemplo, nosso passeio seria a Chan Chan, um dos mais famosos complexos arqueológicos do Peru.

Em 4 de agosto, levantamos umas dez horas da manhã e subimos ao terraço do hotel para tomar café; a cozinha era apertada e tinha parcos utensílios, mas deu pra comer, com a ajuda dos amigos recentes, que tinham de tudo necessário a um mochileiro; por um instante, invejei os franceses, que carregavam canivetes com todos os tipos de faquinhas, mini panelas, acendedor de fogão e faziam milagres com sua “casa móvel”. Tal era o tempo que já estavam viajando pelo mundo, que não tinham mais morada fixa. Realmente invejável…

Saímos por volta das onze e pouco da manhã e, na rua da praia, pegamos um ônibus sentido centro de Trujillo, por 1,2 soles; qualquer coletivo que vá em direção ao centro da cidade serve para ir a Chan Chan e é só pedir ao motorista que avise sobre o ponto de entrada do complexo turístico, que fica a cerca de cinco quilômetros de Trujillo. Paramos na estrada, às portas de Chan Chan, e um guia logo nos ofereceu seus serviços; como estávamos em quatro pessoas, o preço total de 20 soles valia a pena (somente cinco para cada um) e, assim, aceitamos a visita guiada com um especialista, o que fez toda a diferença; eu recomendo.

Da estrada, caminha-se mais uns 30 minutos em uma avenida calçada até a entrada e estacionamento do único palácio do conjunto arqueológico, dentre os nove ainda existentes, aberto a visitação pública. Todos os outros oito palácios de Chan Chan ainda estavam em trabalhos de escavação e pesquisa arqueológica; alguns deles podem ser vistos no caminho da avenida para o estacionamento, mas é o guia que nos chama a atenção, pois as enormes estruturas ficam camufladas na paisagem desértica, já que o que restou dos altos muros de adobe cobertos de argila confundem-se com o solo arenoso, parecendo estranhas montanhas achatadas. Então, pagamos 10 soles de ingresso e atravessamos os muros de entrada do único palácio até então liberado ao público, o Nik-An ou antigo Tschudi, onde o guia passou a nos descrever como era a vida em Chan Chan, há mais de 500 anos.

a caminho de Nik-An

a caminho de Nik-An

estacionamento ao lado do palácio

estacionamento ao lado do palácio

Chan Chan, que significa “sol sol” ou “sol resplandecente”, é também conhecida como a Cidade de Barro, pois o material foi fundamental para a edificação de seus palácios perfeitamente planejados e tombados como Patrimônio Cultural da Humanidade em 1986, pela UNESCO. Chan Chan é a maior cidade edificada em adobe do mundo. Em uma região na qual quase nunca chove, o adobe mostrou-se prático, arquiteturalmente vantajoso e relativamente simples para se trabalhar adornos em relevos e, por isso, tornou-se o eleito como principal componente construtivo dos palácios de Chan Chan. Infelizmente, devido à ação do tempo, da erosão e da pilhagem de ladrões ao longo dos séculos, o complexo arqueológico encontra-se atualmente na lista de patrimônios em perigo e muitos esforços do governo peruano são feitos no sentido de preservar a sua rica história. Nos últimos anos, fenômenos naturais como o El Niño trouxeram uma quantidade de chuvas atípica para a região e evidenciaram a vulnerabilidade do adobe, forçando os pesquisadores e o governo peruano a medidas emergenciais para não deixar os palácios de Chan Chan serem completamente destruídos.

Palácios foi uma denominação dos espanhóis às imponentes construções erguidas em Chan Chan, pela civilização chimú. A região já era há tempos habitada pela civilização moche, que nunca chegou a desenvolver um Estado ou uma unidade política entre os centros populacionais que abrangia. Os moches entraram em declínio por volta de 750 d.C. Os chimús, então, que apareceram mais ou menos nessa época, conseguiram organizar-se politicamente e formar uma cultura forte, com exército poderoso, um Estado preparado e uma clara estrutura hierárquica entre os seus componentes, suplantando, dessa maneira, o povo moche. O apogeu da história chimú deu-se entre 900 d.C. e 1400 d.C., quando Chan Chan viveu seus anos de glória, como sede administrativa, política e religiosa do reino chimú. Chan Chan foi capital do reinado por todo esse tempo, entre os séculos X e XV depois de Cristo.

Os chimús, embora não tão famosos quanto os incas, chegaram a controlar um território de 1000 km² de extensão, que ia desde Tumbes, na fronteira com o Equador, até onde hoje se encontra a cidade de Lima. Nas épocas mais abastadas do império chimú, a cidade de Chan Chan contava com 28 km² de território e tinha cerca de dez palácios murados, também denominados de Cidadelas. Cada palácio era um enorme complexo arquitetônico retangular e murado que abrigava uma praça principal, área de funerais para nobres, salas de depósito de alimentos, quartos para moradia, escritórios de administração e tudo mais que fosse necessário para o perfeito funcionamento de cada núcleo populacional. Chan Chan, no seu auge, abrigou milhares de habitantes, cerca de 100 mil, espalhados por suas cidadelas muradas. Os tetos das habitações dos palácios eram feitos com cana e muros de até 12 metros de altura cercavam cada uma das estruturas, com fins de proteção. Os cidadãos mais pobres, porém, deveriam construir suas casas fora das muralhas, que eram reservadas apenas para os mais privilegiados, a aristocracia chimú.

interior de um palácio e casas ao redor

interior de um palácio e casas ao redor

palácio Nik-An

palácio Nik-An

Os chimús eram predominantemente pescadores, mas havia camponeses, artesãos, ourives que trabalhavam finamente o ouro e a prata, metalúrgicos especializados em cobre e viajantes que traziam dos Andes o complemento alimentício necessário para a dieta chimú, como a batata e o milho. Eles também eram especialistas em hidráulica e irrigação, construindo poços, canais e aquedutos e, assim, transformando as secas paisagens do deserto em férteis campos de cultivo, em escala até mesmo maior do que a atual.

A bem sucedida cidade de Chan Chan era bastante visada e os chimús travaram duas grandes batalhas com os incas, no século XV para tentar manter intacta sua principal base; na primeira luta, eles levaram a melhor, mas na última, rederam-se à estratégia bélica inca de fechar o abastecimento de água à capital do império chimú. Famintos, os derrotados chimús entregaram-se e cederam Chan Chan aos conquistadores, que escravizaram ou mataram os homens, poupando apenas artesãos talentosos e mulheres jovens.

Hoje, há nove ruínas de palácios e 14 km² delimitados do território de Chan Chan.  O palácio que nós entramos, o Templo Tschudi, nos mostra claramente as divisões internas entre seus aposentos.

Tschudi (reprodução de imagem da Internet)

Tschudi (reprodução de imagem da Internet)

Iniciamos a visita pela Praça Central, espaço dedicado à celebração de cerimônias religiosas de culto aos ancestrais; na área superior, posicionavam-se o rei – senhor chimú – e seus sacerdotes, seguidos de outros religiosos de menor importância, músicos e demais participantes que lotavam a praça.

entrada de Nik-An - estruturas reforçam os muros de adobe

entrada de Nik-An – estruturas reforçam os muros de adobe

praça principal

praça principal

praça principal

praça principal

praça principal

praça principal

Logo em seguida, através do Corredor de Peixes e Aves, os senhores chimús podiam se deslocar da praça aos aposentos internos, como os templos; no corredor, ainda veem-se os relevos decorativos em forma de redes de pesca, pelicanos e peixes em movimento que, um dia, foram coloridos de preto e amarelo.

entrada do corredor de peixes e aves

entrada do corredor de peixes e aves

peixes nas ondas

peixes nas ondas

Outro destaque é a Sala del Altarcillo, um pátio cerimonial edificado num nível inferior ao restante das salas, o que lhe dava evidência e a possibilidade de construção de uma fonte de água, um reservatório; todos os muros eram decorados com representações de redes de pesca em relevo, pintadas de branco e diversas rampas levavam os transeuntes que vinham da praça principal e do corredor de peixes e aves aos templos do interior do palácio.

redes de pesca

redes de pesca

altarcillo

altarcillo

Depois de várias salas, usadas como escritórios, moradias ou depósitos, alcançamos o Recinto Funerário, ambiente mais sagrado e importante do complexo. No centro, a tumba do senhor chimú é rodeada por 44 tumbas secundárias, nas quais jazem sua mulher, concubinas e guerreiros, sacrificados na morte do senhor para garantir a ele uma boa passagem para a outra vida. Os muros trapezoidais são característicos da arquitetura chimú e a sua eficiente disposição de aposentos dentro dos palácios foi inclusive mantida em épocas incas.

salas do palácio

salas do palácio

detalhes

detalhes

relevos em Chan Chan

relevos em Chan Chan

recinto funerário

recinto funerário

recinto funerário

recinto funerário

muro trapezoidal

muro trapezoidal

A ocupação da capital Chan Chan pelos chimús durou mais de 500 anos, até que depois de muita resistência e uma longa guerra, a população foi finalmente subjugada pelos incas, liderados por Túpac Yupanqui, no ano de 1470 da era cristã. O rei inca levou Minchancaman, líder chimú, como prisioneiro para Cuzco e tomou posse de Chan Chan. Pouco tempo depois, entretanto, os espanhóis invadiram o continente e os incas quase não puderam aproveitar uma de suas últimas conquistas. Cerca de 60 anos depois da chegada do homem branco, os espanhóis, inclusive ajudados por descendentes chimús que ainda nutriam grande ódio pelos incas, dominaram todos os indígenas e fundaram Trujillo, uma nova capital para o novo império espanhol. Chan Chan passou a cair de importância, sendo eventualmente abandonada e esquecida.

Do complexo de Chan Chan, nós saímos novamente na avenida e viramos à esquerda, em direção ao Museo de Sitio Chan Chan, a poucos metros de caminhada e cujo ingresso já está incluído na entrada à cidade arqueológica. Ele é pequeno, mas interessante. Há cerâmicas das épocas chimú e inca, que já eram feitas com moldes e produzidas em grandes quantidades, informações sobre as principais civilizações que habitaram a região e reproduções em tamanho natural de situações do cotidiano dos moradores de Chan Chan, no ápice de sua ocupação.

museu de Chan Chan

museu de Chan Chan

Deixamos o museu pela hora do almoço e nossa intenção era visitar outros complexos arqueológicos da área de Trujillo. Assim, almoçamos um cheviche mal feito e excessivamente apimentado em um bar da avenida e partimos a pé para a Huaca Esmeraldas ou Huaca La Esmeralda, a poucos quilômetros de distância de Chan Chan. Nesse momento, os franceses e nós nos separamos, pois um pé machucado impedia Sabrina de andar mais rápido. Insistiram que seguíssemos adiante sozinhos e nós aceitamos, para poupar tempo.

Uns três quilômetros à frente, na mesma avenida, a Mansiche, Michael e eu chegamos à igreja de mesmo nome e viramos à direita, para caminhar mais umas quatro quadras até a Huaca La Esmeralda, um templo da cultura chimú.

circuitos arqueológicos de Trujillo (reprodução de imagem da Internet)

circuitos arqueológicos de Trujillo (reprodução de imagem da Internet)

igreja Mansiche

igreja Mansiche

O termo “Huaca” vem do Quéchua “Wak’a” e serve para designar tudo aquilo que seja fundamentalmente sagrado para a civilização inca, como ídolos, imagens, múmias, animais, templos ou ainda divindades como o próprio sol. Apesar de ter origem na cultura incaica, o termo foi e vem sendo utilizado para se referir a lugares sacros das civilizações dominadas pelos incas, na América do Sul. Segundo os incas, o seu rei Túpak Yupanqui era capaz de se comunicar com as huacas, o que lhe conferia, supostamente, a habilidade de saber tudo sobre o passado e adivinhar o futuro. Conforme relatos, ele até teria previsto a chegada do homem branco, que viria a destruir seu grande império. Hoje, as huacas ainda estão presentes na cultura sul americana, na forma, por exemplo, de imagens de santos, carregadas em procissões. Mescladas obviamente com o cristianismo trazido pelos europeus, as huacas modernas só se assemelham às antigas na fé e na veneração a elas depositadas, pelos fiéis praticantes religiosos.

A Huaca La Esmeralda, redescoberta em 1923, é um templo pequeno, de planta retangular, tipo piramidal, característico da civilização chimú. A huaca tem cerca de 2600 m² de área e está hoje encravada no meio de uma região residencial e nada bonita de Trujillo. A visita é rápida, são 65 metros de comprimento e 41 de largura; podemos ver rampas de acesso ao templo, decorações semelhantes às do palácio em Chan Chan, como redes de pesca, figuras zoomórficas e geométricas e típicos muros de adobe. O lugar sofreu várias modificações ao longo dos anos e estima-se que cada uma de suas três plataformas tenha recebido acréscimos em diferentes períodos da história chimú.

aparência provável da huaca Esmeraldas (reprodução de imagem da Internet)

aparência provável da huaca Esmeraldas (reprodução de imagem da Internet)

Huaca Esmeraldas

Huaca Esmeraldas

Huaca Esmeraldas

Huaca Esmeraldas

Alguns arqueólogos sustentam que a huaca possa ter sido lugar de morada de um senhor chimú, mas o consenso é mesmo de que ela tenha sido um templo. Com o pouco estudo realizado na área, não há muitas certezas e também não se sabe a origem do nome que ela carrega atualmente. De qualquer modo, mesmo sendo meio sem graça, honestamente, podemos afirmar que a huaca vale o passeio, simplesmente pela história que tem.

A Huaca Esmeraldas é atualmente cercada por muros simples de tijolo aparente e protegida por um portão de ferro. Quando chegamos a ela, pra ser bem sincera, eu pensei que fosse uma escola do governo; no interior, a primeira coisa que vimos, sentados à porta do modesto escritório que recepciona os visitantes, foram estranhos cachorros de pele acinzentada e com escassos tufos de pelos espalhados pelo corpo. Imediatamente, eu me compadeci por eles, crendo que estavam doentes e sofrendo de alguma moléstia de pele. Fui informada, então, que os cães são uma tradicional raça peruana que, de fato, não possui pelos e mantém uma temperatura corporal média de 40 graus Celsius. Existentes desde os primórdios da história do Peru, os horríveis cachorros eram antigamente colocados sobre o peito de pacientes com asma, como medida terapêutica, funcionando como uma bolsa de água quente. Hoje, por decreto de lei, todos os sítios arqueológicos do país devem ter ao menos um cão da raça Beringo circulando e dando ao lugar uma atmosfera mais realista da história. Eles são orgulho e patrimônio peruanos. Pena que sejam tão feios…

cães na Esmeraldas

cães na Esmeraldas

cão beringo

cão beringo

Enquanto caminhávamos pelas plataformas da huaca, os franceses chegaram e, como não demoraram muito tempo ali, seguiram conosco, de táxi, até a próxima e última parada do dia, a Huaca Arco-Íris. Na rua mesmo, enquanto negociávamos com o taxista, uma senhora solidária nos fazia sinais de dentro da janela de uma casa, tentando nos alertar para que não pagássemos mais do que cinco soles pelo trajeto entre as huacas Esmeraldas e Arco-Íris.

huacas e Chan Chan

huacas e Chan Chan

A Huaca Arco-Íris, ou Huaca del Dragón, é bem mais interessante que a Esmeraldas. Maior e com mais muros cheios de detalhes ainda bem nítidos, a Arco-Íris demanda mais tempo e atenção. Assim, como ela fecha às 17h30min, é bom observar a hora. Nós ainda tínhamos tempo, pois o passeio à huaca Esmeraldas fora bastante rápido. Dessa forma, por volta das três e pouco da tarde, já chegávamos à última atração turística do nosso dia cultural.

Segundo os arqueólogos, a huaca Arco-Íris também pertence à cultura chimú e foi erigida entre os anos 800 e 1000 da era cristã, tempos iniciais da civilização chimú e finais da cultura Tiahuanaco-Wari.

Entramos no complexo da huaca Arco-Íris e já vimos o enorme muro de adobe que circunda a construção, à semelhança do palácio Nik-An, de Chan Chan. Esse muro está atualmente mais liso e exibe desenhos apagados e raspados em somente algumas partes das paredes. Internamente, há um segundo muro, esse sim cheio de desenhos em alto relevo bem conservados. A muralha externa possui apenas uma entrada para o interior, o que tornava o prédio dentro dela mais protegido. Então, como construção forte e segura, além de lugar de adoração, a huaca também pode ter servido como depósito de alimentos à população que vivia ao seu redor, sugerindo que suas 14 salas internas eram pequenos armazéns. Nelas, foram encontradas várias estátuas de madeira, com propósito religioso, em 1943, quando um caçador de tesouros redescobriu o espaço anteriormente abandonado.

lateral do muro externo

lateral do muro externo

entrada única da huaca Arco-Íris

entrada única da huaca Arco-Íris

Dessa forma, além da missão prática de servir como posto de abastecimento para a região, a huaca Arco-Íris, conforme estudos, foi provavelmente outro templo, um monumento religioso, cuja função primária era cerimonial. A construção interna tem duas plataformas trapezoidais acessadas por rampas e é totalmente cercada pelos muros de adobe. A muralha externa, que forma um retângulo de 60 por 54 metros de comprimento, apresenta algumas imagens, mas é especialmente no muro de dentro que essas figuras ainda estão incrivelmente evidentes. São desenhos em alto relevo que representam seres antropomórficos, zoomórficos e muitos arco-íris simplificados, relacionados à fertilidade trazida pelas chuvas, já que é sempre depois das águas que eles aparecem no céu.

dentro da huaca Arco-Íris

dentro da huaca Arco-Íris

rampas e muro interno

rampas e muro interno

As representações de arco-íris, dragões e homens são estilizadas, mas bastante claras. Cenas ritualísticas de dançarinos em movimento estão na parte de cima dos muros e podemos observar os bailarinos se direcionando para a entrada do templo; criaturas com cabeças alongadas, dentes afiados e rabos bifurcados assemelham-se a dragões e animais bicéfalos, possivelmente serpentes, posicionam-se abaixo dos arco-íris; no meio deles, há Tumis, tipos de facas cerimoniais usadas pelas culturas moche, chimú e inca. Um tumi era decorado com uma figura humana, que servia de cabo, e tinha a base da faca semicircular, como a de um cutelo. Atualmente, durante as festividades do Inti Raymi, em 24 de junho, uma lhama é sacrificada com uma faca tumi. Alguns desenhos são até engraçados aos nossos olhares modernos; eu mesma enxerguei “duendes” em vários dos homens estilizados.

huaca Arco-Íris

huaca Arco-Íris

desenhos em alto relevo

desenhos em alto relevo

arco-íris, ondas, dragões, seres bicéfalos e tumis

arco-íris, ondas, dragões, seres bicéfalos e tumis

acho que vi um duende

acho que vi um duende

A huaca Arco-Íris também se encontra no meio da cidade, com muitas casas e comércio ao redor, fator que denigre, de certa forma, o complexo. Mesmo assim, a visita é interessante. Seu ingresso, assim como o da Huaca Esmeraldas e o do Museu de Sítio Chan Chan, já está incluído no pacote turístico da entrada à cidade de barro de Chan Chan.

Saímos da Arco-Íris e retornamos de táxi para o hotel, em Huanchaco. Decidimos voltar de táxi e não de ônibus pois o valor da corrida dividido em quatro compensava. Na praia, Michael e eu fomos fazer compras nos mercadinhos. Em Huanchaco, não há grandes mercados, mas pequeninos bazares que funcionam como padaria e “secos e molhados”. Os pães não são fresquinhos, mas enfim, matam a fome. Neles, também me abasteci do vício da viagem, que me rendeu 10 quilos de engorda: doce de leite; na Colômbia, me lambuzava de Arequipe, mas no Equador e Peru, descobri o “manjar blanco”, doce de leite escuro e típico da região e também fabricado pela Nestlé. Eu comecei comprando embalagens de 200 gramas e acabei a viagem nos pacotes de 1 kg. Eu só não compreendo como a Nestlé distribui o Manjar Blanco em praticamente todos os países da América do Sul – eu comprei desde o Equador até o Chile – e não vende essa tentação dos deuses no Brasil. Para obter o mesmo gosto e cor do Manjar Blanco, podemos cozinhar a lata de leite condensado; porém, a textura não fica a mesma. Enfim, uma das coisas que eu mais sinto falta da viagem…

manjar blanco da Nestlé

manjar blanco da Nestlé

Enquanto estávamos nos mercadinhos, os franceses caminhavam na orla em busca de uma papelaria. A primeira vez que os vimos, na sala do Omar, eles se empenhavam em falsificar carteirinhas de estudante, a fim de pagar meia-entrada em diversas atrações. No Google Images, eles conseguiram uma carteirinha vazia e a preencheram através do Word; copiaram e colaram as próprias fotos e agora só faltava imprimir. Eu vou confessar abertamente que achamos a ideia incrível e íamos fazer a mesma coisa, mas não encontramos nenhuma imagem sobre a qual pudéssemos preencher nossos dados de maneira crível. Tentando justificar a fraudulência injustificável, afirmo que os ingressos a sítios turísticos são muito mais caros do que deveriam ser e jamais entenderei o motivo de estrangeiros pagarem bem mais caro, às vezes mais que o dobro, do que os residentes do país, para ter acesso a algumas atrações. Nós já gastamos com passagens, estamos movimentando a economia da cidade ficando em hotéis, comendo em restaurantes e fazendo compras e ainda temos que pagar uma ridícula diferença de preço para entrar nos pontos turísticos. Não concordo com o aumento de valores para estrangeiros. Portanto, quem tiver a carteirinha de estudante, leve-a! As carteiras são aceitas em muitos lugares e o desconto, de 50% na maioria das vezes, é sempre bem-vindo!

De volta ao hotel, tomamos banho frio novamente, já que os aquecedores a carvão instalados no telhado eram da idade da pedra e demoravam um século para esquentar a água. Devíamos nos certificar de que eles já estivessem acesos há tempos para, só então, ligar o chuveiro. Bom, pelo preço da diária, não dava pra esperar muita coisa. Os melhores hotéis de Huanchaco estão na orla, de frente para o mar. Os das travessas são bem simples e a mesma coisa acontece com toda a vizinhança; a beira-mar é uma graça, mas os bairros mais para o interior só têm casas sem reboco e feias construções igualmente inacabadas.

sistema de aquecimento da idade da pedra

sistema de aquecimento da idade da pedra

orla bonitinha de Huanchaco

orla bonitinha de Huanchaco

já no interior...

já no interior…

Já na cama, conferindo os gastos do dia, percebi que as notas de Nuevos Soles continham sítios turísticos do Peru. A popularíssima cidade de Macchu Picchu ilustra a nota de 10 e então vi os muros de Chan Chan colorirem os 20 soles.

MAPI na nota de 10 soles

MAPI na nota de 10 soles

Chan Chan na nota de 20 soles

Chan Chan na nota de 20 soles

No dia 5 de agosto, nós levantamos cedo e, juntamente com os franceses, pegamos um táxi na beira da praia de Huanchaco para nos levar ao centro de Trujillo. Assim como em Tumbes ou outras cidades do Peru, não há rodoviárias em Trujillo, mas apenas as garagens das empresas de ônibus específicas. Eles negociaram 10 soles para nós quatro e, novamente então, o táxi saiu barato. Chegamos a uma empresa de transporte intermunicipal chamada Movil Tours, na Avenida América Sur, em uma área central de Trujillo. Descemos lá e vimos que ainda havia quatro passagens para Huaraz, para as 21h50min da noite, por 55 soles cada uma. Huaraz seria nossa próxima direção, mas o destino dos franceses era Lima e só havia passagens para o meio-dia. Incoerentemente, os bilhetes para Lima, que é mais longe que Huaraz, eram 45 soles cada, 10 a menos. De qualquer modo, como os franceses e nós ainda queríamos ver outras atrações em Trujillo durante aquele dia, tínhamos obrigatoriamente que viajar à noite. Assim, eles teriam que buscar outra empresa de ônibus para adquirir passagens a Lima, saindo à noite. Para Michael, nós dois já deveríamos garantir nossos bilhetes para Huaraz na Movil Tours, mas eu insisti em acompanhar os amigos a outra companhia e ver se, talvez, não encontrássemos passagens mais baratas. Contra a vontade do Michael, já que a Movil Tours não deixava fazer reservas nem por meia hora e ele não queria arriscar perder os bilhetes, fomos com os franceses à outra empresa de ônibus, na mesma rua, chamada Linea. Apesar de ser adiante na mesma avenida, umas seis quadras separavam uma companhia da outra e caminhar com as malas foi bem cansativo! Chegamos à Linea e não tinha mais nada nem para Lima, no mesmo dia, e nem para Huaraz! Uma pena, já que cada passagem seria 35 soles!

Com a habitual mania de engolir o estresse, ao invés de gritar ou brigar comigo, Michael somente me lançou um horrível olhar de reprovação. Bem, minha intenção fora boa, mas infelizmente não deu certo. Nossa opção seria, então, retornar à Movil Tours, caminhando tudo de novo. Soltando fogo pelas ventas, nos despedimos dos franceses, que procurariam outras empresas para comprar suas passagens, e retornamos as seis quadras até a primeira garagem, machucando as costas com as duas mochilas e ferindo as mãos com as alças do “morto”, a capa de uma das mochilas lotada de compras. Novamente na Movil Tours, ficamos estarrecidos com a informação de que somente havia ainda um bilhete; dos quatro que estavam no sistema, na nossa primeira consulta, três tinham sido vendidos nos últimos minutos. Azar! Pronto, a merda estava feita! Michael ficou puto e quis me matar com a força da mente; depois de uns segundos, ele só disse “falei que a gente devia ter comprado antes”. Bufei e me antecipando ao pior, eu, que já estava meio cansada da viagem, passei a me defender atacando. Fortemente, afirmei que, se ele quisesse que então comprasse aquele último bilhete e fosse embora sozinho… Eu me viraria e provavelmente iria a Lima. Eu não sei se os homens são ou só se fazem de idiotas, pois a reação imediata do Michael foi virar-se ao balcão e pedir a passagem. Francamente, eu fiquei pasmada com a situação e mal esbocei qualquer reação. Eu tinha falado a frase impensada no calor do momento, e ele realmente a levara a sério, o que me deixou mais raivosa ainda. Entretanto, nos cinco minutos que ficamos discutindo, a última passagem fora também vendida. Não tinha mais nada disponível e, portanto, nós dois teríamos que nos contentar em passar mais uma noite em Trujillo. Confesso ter ficado aliviada.

Porém, descobrimos, em seguida, que outra empresa, além da Movil Tours e da Linea, tinha uma rota para Huaraz, a Empresa de Transportes 14 S.R.L.. Pegamos um táxi e nos dirigimos à Avenida Moche. Na 14, infelizmente também só tinha um lugar vago no ônibus e, teimosa, reiterei que ele fosse sozinho. Quando ele mais uma vez virou-se ao funcionário para realizar o pagamento, eu não aguentei e perguntei: “Você vai mesmo comprar?”. A resposta foi: “Mas foi você que falou pra eu ir…”. Pois é, por isso continuo questionando se os homens se fazem de bestas ou se realmente são umas múmias… É lógico que eu estava nervosa e falando pra ele ir embora da boca pra fora, já que percebera o ódio dele diante da azarada situação, mas não queria perder meu companheiro de viagem; quando Michael se virou para adquirir uma passagem apenas para Huaraz, eu nem acreditei… Ele iria mesmo embora sem mim? Falei tudo isso a ele e declarei ainda, me sentindo abandonada, que se nós nos separássemos naquele momento, não haveria mais volta, não nos encontraríamos em outro lugar. Michael ficou quieto e acho que percebeu o deslize. Desistiu e seguimos unidos.

Eu não tenho o que reclamar do Michael, nós viajamos juntos por meses e esse foi nosso pior momento. Lógico que houve rusgas menores, como não seria diferente em uma longa viagem. Entretanto, sempre nos demos bem, tínhamos gostos parecidos e interesses em comum, podendo, assim, seguir os mesmos caminhos. Michael foi um ótimo companheiro, excelente organizador de roteiros e é uma boa pessoa, de muito boa índole. Hoje, continuamos amigos e sempre nos falamos, inclusive planejando próximas viagens, mas naquele dia especificamente, quase mandamos a amizade por água abaixo, se ele tivesse comprado aquela única passagem para Huaraz. Então, apesar de bons amigos, durante a viagem, nós não tínhamos a cumplicidade de um casal, o que ficou evidente naquele 5 de agosto. Se fôssemos namorados, ele certamente ainda teria ficado puto comigo, mas a opção de ir embora sozinho não teria sido jamais cogitada, ainda que “eu tivesse mandado”… Namorados brigam, mas sabem que estão juntos, mesmo diante dos problemas e das diversas situações estressantes que vão se acumulando em uma viagem. Todos nós podemos errar; eu corri o risco, procurando o melhor preço para as passagens, e acabei errando, mas senti que estava sozinha e potencialmente abandonada, na busca da solução para o problema, pois ele não hesitara em seguir a viagem em modo solo. Imagino que na cabeça dele, eu é quem tinha dado a ordem, eu é quem ficara nervosa e desejara a separação. Realmente, os homens não leem nas entrelinhas. Enfim, por essas e por outras, com quase três meses de estrada, eu honestamente, estava começando a ficar cansada; a depressão tinha ficado pra trás, pois eu não tinha nem tempo de ficar triste. Entretanto, apesar de estarmos sempre cheios de atividades legais, eu estava começando a me sentir carente de novo, saudosa de casa e fatigada da intensa rotina de passeios. Acreditem ou não, passear também pode virar rotina, levantar cedo todos os dias para fazer tours, ter obrigações de horários, pular de um albergue a outro… Até férias também começam a cansar e a gente precisa tirar férias das férias. Não era, porém, ainda o momento de parar e, assim, nós dois continuamos.

Compramos as passagens na garagem da 14 por 40 soles cada uma, para o dia seguinte, 6 de agosto, às nove da noite. Mais calmos e conformados, nos instalamos em um hoteleco quase em frente à garagem de ônibus, o Hospedaje El Eden, e pagamos uma diária de 30 soles pela suíte privativa. O quarto era horrível; longe de ser um paraíso, estava mais para um inferninho do centro de São Paulo. Porém, ele seria conveniente e tinha TV a cabo. Deixamos as mochilas e saímos, resolvidos e mais felizes um com o outro, para os outros passeios em Trujillo.

Pela manhã, a intenção era comprar as passagens de Huaraz para a noite, deixar as bagagens na empresa de ônibus e visitar outras huacas da região e mais o belo centro histórico da cidade no mesmo dia. Agora, porém, com a viagem marcada somente para a noite do dia seguinte, teríamos tempo de sobra. Decidimos ir somente às huacas e deixar o centro histórico de Trujillo para o dia seguinte, ou não teríamos nada para fazer no dia 6 de agosto.

Assim, andamos até a Avenida de los Incas, que era uma travessa da Avenida Moche, onde estávamos hospedados, para ir ao ponto da van que nos levaria às huacas. Na ocasião, a Avenida dos Incas estava em reformas e o trânsito de carros impedido. Mesmo assim, caminhamos entre entulhos, valas e esgotos abertos até o Mercado Mayorista, a umas sete quadras da esquina das avenidas Incas e Moche. O mercado compreende uma feira de rua e uma área coberta cheia de barraquinhas que vendem frutas, verduras e comidas. Apesar de supostamente turístico, o lugar é imundo, xexelento e desordenado. Frutas podres e amassadas forram o chão e dividem espaço com muito lixo. O interessante é somente ver a variedade de produtos que nos são desconhecidos, como o milho completamente preto. Há uma gama enorme de espécies de milho no Peru e as cores variam de branco a negro, passando por amarelos e vermelhos.

rua do mercado

rua do mercado

milho negro

milho negro

Na esquina do mercado, pegamos, por 1,4 soles, uma combe lotada e nojenta para as Huacas do dia, a Huaca del Sol e a Huaca de La Luna. Logo ao chegar ao complexo arqueológico, compramos o ingresso de 10 soles para visitar a huaca da Lua e a entrada de três soles para o Museo Huacas de Moche; a huaca do Sol estava fechada ao público.

O museu traz muitas estátuas e peças de cerâmica retiradas das próprias huacas vizinhas, nos trabalhos de escavação e pesquisa arqueológica. Os itens são predominantemente da cultura moche, mas também há artefatos e objetos de outros povos. O museu é bem organizado e traz explicações detalhadas sobre a cronologia dos habitantes do Peru; é um complemento muito válido à visita nas huacas.

museu

museu

estátua do cão beringo na frente do museu

estátua do cão beringo na frente do museu

museu (reprodução de foto da Internet)

museu (reprodução de foto da Internet)

Coincidentemente, logo ao sairmos do museu, encontramos os franceses de novo, que já tinham conseguido comprar suas passagens para Lima e também iniciavam o passeio cultural. Ficamos no mesmo grupo deles e começamos o tour pela Huaca de la Luna. O guia está incluído no valor do ingresso de 10 soles e a visita dura cerca de uma hora. Os grupos têm limites de 25 pessoas e, às vezes, é necessário esperar o próximo.

Segundo estudos, as huacas do Sol e da Lua pertencem à sociedade moche ou mochica, anterior ao povo chimú e que também se desenvolveu na costa norte do Peru. Os moches tiveram seu início por volta dos anos 200 d.C. e entre 400 a 600 d.C, a civilização teria experimentado seu apogeu. Apesar de nunca terem sido capazes, segundo os historiadores, de unificar politicamente seu povo, os moches construíram grandes cidades e abrangeram várias concentrações humanas ao longo de um vasto território.

A Huaca de la Luna, situada aos pés do Cerro Blanco, montanha sagrada para os moches, foi o templo maior e principal complexo político-cerimonial da sociedade moche.

montanhas

montanhas

Cerro Blanco

Cerro Blanco

O complexo arquitetônico, que abarca uma área de 290 por 210 metros, está constituído por três plataformas de forma piramidal e quatro praças delimitadas por amplos muros de adobe. Calcula-se que as construções sobrepostas pertençam a diferentes épocas da cultura moche, com até séculos de diferença, e correspondam às contribuições e renovações que cada nova dinastia dava ao templo.

Nós começamos o passeio subindo um pouco a montanha e entrando no complexo pela parte de trás, onde há várias salas nas quais, segundo o guia, sacrifícios humanos eram feitos, para tentar aplacar a fúria dos deuses, manifestada por fenômenos naturais destrutivos, de acordo com os moches. Das salas, restaram apenas partes baixas das paredes que hoje se encontram protegidas por estruturas de bambu e telhas de amianto. Muitos objetos que contam a história da cultura moche foram retirados desses aposentos e estão em exibição no museu em anexo.

salas de sacrifícios e oferendas

salas de sacrifícios e oferendas

Em seguida, entramos, à esquerda, em uma grande área cercada por muros de adobe; os muros, porém, estão pela metade e, em boa parte, perderam a camada lisa que os recobria, expondo os tijolos de barro; nessa área, destacam-se extraordinários relevos policromáticos e pinturas murais, bastante conservados. Dessa forma, para proteção e conservação dos desenhos, os restantes de muros são atualmente completados por paredes de vidro e estruturas de ferro que suportam um teto de telhas de amianto. Essa medida necessária enfeia bastante o que restou da huaca, infelizmente. Nessa sala, vários ambientes em diferentes níveis expõem paredes forradas dos belíssimos desenhos citados.

vidros e telhas para proteção

vidros e telhas para proteção

huaca de la Luna

huaca de la Luna

huaca de la Luna

huaca de la Luna

diferentes níveis

diferentes níveis

A representação do deus dos moches, Dios Degollador ou Ai apaec (deus das montanhas), em uma estranha figura zoomórfica, ainda exibe as cores vivas da época original; os cabelos são representados por elementos naturais, como as ondas, fazendo uma alusão à pesca, principal fonte de renda da civilização; os olhos grandes, que tudo veem, indicam que deus estaria em todos os lugares; a boca de um animal, possivelmente um jaguar, demonstra a importância da natureza, assim como as serpentes e arraias que emolduram os desenhos. A huaca da Lua é dedicada ao deus das montanhas que, segundo os moches, era o responsável pela água que chegava à cidade. Para os peruanos antigos, a natureza era fonte de vontade divina e tudo nela deveria ser reverenciado e homenageado através dos lugares sacros e seus desenhos. Certamente, o templo colorido deve ter causado impacto nos incas, que reconheceram seu valor sagrado, nomeando-o huaca.

deus das montanhas

deus das montanhas

Saindo dessa sala, é possível se ter uma visão panorâmica do deserto à frente onde, mais adiante, a 500 metros, está a Huaca del Sol. Logo em seguida, vê-se o verde das plantações, na área rural de Trujillo. A Huaca del Sol se encontrava fechada ao público, na ocasião da nossa visita, pois ainda faltavam 25% para que seus trabalhos de escavação fossem concluídos. A Huaca del Sol também serviu provavelmente como núcleo político e administrativo da cidade moche, mas, assim como as outras huacas, era em primeiro lugar um local sagrado de adoração e centro religioso. Nos tempos antigos, a cidade capital da sociedade moche se encontrava entre as duas huacas.

huaca do Sol

huaca do Sol

Continuamos descendo pela huaca de la Luna, por salas diversas até a praça principal (praça 1), espaço destinado aos encontros religiosos e administrativos do agrupamento. A enorme praça, de 100 por 180 metros, possui, no seu lado norte, uma parede inclinada e totalmente adornada, que corresponde a um dos lados do edifício piramidal da huaca; nela, ainda podemos observar desenhos que se repetem sucessivamente em fileiras e que representam homens bailando, guerreiros, aranhas, serpentes e outras figuras comuns aos cidadãos moches, sempre relacionadas aos ritos religiosos praticados. Na parte de cima, acessada por uma rampa lateral, havia outras praças e salas; dali também, o líder moche ou os sacerdotes se dirigiam ao povo. O acesso do povo ao templo restringia-se à praça principal e somente os privilegiados ascendiam aos níveis superiores da construção.

Huaca de la Luna (reprodução de imagem da Internet)

Huaca de la Luna (reprodução de imagem da Internet)

maquete (reprodução de imagem da Internet)

maquete (reprodução de imagem da Internet)

reconstrução Huaca de la Luna (reprodução de imagem da Internet)

reconstrução Huaca de la Luna (reprodução de imagem da Internet)

face norte da praça

face norte da praça

face norte da praça

face norte da praça

aranhas

aranhas

cenas da mitologia moche, atentar para o beringo do lado esquerdo

cenas da mitologia moche, atentar para o beringo do lado esquerdo

Sabe-se que a sociedade mochica orientava-se por calendários cerimoniais, que indicavam o ciclo das estações do ano, assim como fenômenos naturais, tais como o início das chuvas, solstícios, equinócios, eclipses da lua e do sol. As diversas salas presentes na huaca têm, segundo os estudos, funções determinadas da mesma forma pela variedade de eventos cerimoniais presentes no seu calendário. Observou-se que outras huacas moches possuem o mesmo modelo arquitetônico da huaca da Lua, sugerindo que as salas, praças e vários aposentos que se complementam obedeciam a distintas e orientadas celebrações e práticas cerimoniais.

Estima-se que a sociedade moche tenha iniciado seu declínio por volta de 750 d.C. Além de não constituírem uma unidade política entre todas as cidades da civilização, o que os tornava mais fracos, fenômenos naturais como o El Niño, encarados como ira dos deuses, passaram a destruir plantações e dificultar a pesca. Tempos de chuva eram sucedidos por anos de escassez total de água. O povo, então, reunido na praça principal, pedia ajuda aos oráculos e sacerdotes para que eles intervissem junto às divindades. Usando coca ou outro tipo de alucinógenos, o sacerdote tentava adivinhar, em cerimônia sagrada, qual era a vontade do deus e o que seria necessário para que todos fossem atendidos. A exigência divina era normalmente ligada a sangue. Sacrifícios humanos de guerreiros e também de animais passaram a ser comuns na huaca de la Luna; eles eram feitos de maneira discreta e particular, nas salas do templo nas quais nós entramos primeiro, aquelas dedicadas às oferendas. Vale citar que ser sacrificado e oferecido aos deuses era a maior honra que um cidadão podia merecer. O sacerdote somente exibia o sangue do imolado num copo, para as 10 mil pessoas que cabiam na praça e que clamavam por mudanças. O Deus das Montanhas ou o Degolador satisfazia-se com o sangue das cabeças de suas oferendas, cortadas com tumis, as facas sagradas. Na última parte da grande parede da praça principal, o Ai apaec está inclusive representado de corpo inteiro, segurando um tumi em uma mão e uma cabeça na outra.

face norte da praça

face norte da praça

como teriam sido os desenhos na face norte da praça principal

como teriam sido os desenhos na face norte da praça principal

ao centro o deus das montanhas (reprodução de imagem da Internet)

ao centro o deus das montanhas (reprodução de imagem da Internet)

Contudo, como a força feroz na natureza não parava de assolar as cidades moches e seu povo rebelava-se mais, na falta de uma hierarquia definida, as pessoas passaram a não acreditar mais no poder dos sacerdotes e uma guerra interna instalou-se, abalando mais a cultura moche. A maior parte dos habitantes, pobres e enfraquecidos, rendeu-se à sociedade chimú, que surgia para tomar conta da região.

beringo na huaca da Lua

beringo na huaca da Lua

Deixamos o complexo no final da tarde e voltamos com os franceses de combe até perto da Avenida dos Incas. Michael e eu almoçamos em um restaurante de uma rua arborizada e até bem decente nas imediações, enquanto os franceses nos aguardaram numa pracinha em frente, comendo “King Kong”, um doce típico do Peru, feito com bolacha e doce de leite. Perto da Avenida dos Incas, a paisagem empobrece e já fica horrorosa. Dali, os franceses foram para o centro histórico, já que eles iriam embora na mesma noite. Como nós teríamos que matar tempo dia seguinte, decidimos não continuar com eles e voltamos ao hotel, prometendo tentar nos encontrar de novo em Lima. No hotel, relaxamos e assistimos ao “Faustão” e “Fantástico”, na Globo Internacional. Depois do pior passado, estávamos ambos restaurados à pacífica convivência costumeira e dormimos mais alegres para as atividades do dia seguinte.

Em 6 de agosto, fizemos questão de levantar tarde e enrolar o máximo que pudéssemos. Fizemos check-out meio-dia e deixamos as mochilas no hotel, sem custo adicional. A região na qual estávamos, na avenida Moche, era feia, mas ao menos bastante estratégica. Pudemos caminhar ao centro histórico, que ficava nas imediações, cerca de cinco quadras depois da avenida dos Incas. Essa área da cidade é pobre, suja e desagradável à vista. O mesmo não se pode dizer do centro histórico. Maravilhoso!

centro histórico de Trujillo (reprodução de imagem da Internet)

centro histórico de Trujillo (reprodução de imagem da Internet)

A Plaza de Armas, onde se fundou a cidade em 1535, é linda e todos os quarteirões adjacentes conservam um casario de belas fachadas coloridas, que remontam a tempos coloniais e também a épocas republicanas. Prédios governamentais e a catedral, sem surpresa, encontram-se ao redor da praça e, bem no centro dela, o monumento à Liberdade lembra a independência de Trujillo, proclamada em 1820. Canteiros floridos e palmeiras dão vida e ainda mais cores ao espaço.

praça de Armas (reprodução de foto da Internet)

praça de Armas (reprodução de foto da Internet)

Plaza de Armas - linda!

Plaza de Armas – linda!

palácio do governo

palácio do governo

catedral

catedral

Ruas mais limpas e um comércio diversificado também marcam a região. Dos tempos da república, realço as características varandas fechadas em madeira, com belos trabalhos em treliça e adornos entalhados, e ainda as janelas com grades brancas típicas do período. Igrejas coloniais, casarões e ruas cujo trânsito de carros não é permitido deixam a visita ao centro histórico de Trujillo muito especial e um passeio imperdível.

tradicionais varandas de madeira

tradicionais varandas de madeira

varandas

varandas

grades das janelas

grades das janelas

Iglesia La Merced

Iglesia La Merced

Iglesia Belén

Iglesia Belén

Iglesia San Agustín

Iglesia San Agustín

À medida, porém, que nos afastamos da praça de Armas, retornando ao hotel, a arquitetura já não fica nada digna de admiração. Nós almoçamos no centro, fomos ao Mercado Geral, um enorme camelódromo, entramos em lojas e fizemos de tudo para matar tempo. Michael até cortou o cabelo. Ainda assim, às quatro da tarde, já estávamos de volta ao hotel Éden e, entediosamente, esperamos nosso ônibus para Huaraz.

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